O golpe dentro do golpe ou “Hic Rhodus, hic salta!”

Marcelo Guimarães Lima

No meu tempo de criança chamava-se “seriado” e passava no cinema antes do filme principal. Eram, em geral, produções americanas antigas de faroeste ou aventuras no espaço, episódios curtos que terminavam por uma cena de suspense e a chamada para o próximo capítulo.  “Cliff-hanger” é a expressão norte-americana para a cena de perigo e, por extensão, para o tipo de narrativa. Poderia ser traduzida, de forma mais ou menos literal, por: “pendurado no penhasco”.  O “mocinho”, quer dizer, o herói ou quem ele tentava proteger está em situação de perigo mortal...o que vai acontecer? Saberemos no próximo episódio. O próximo episódio trazia o alívio do perigo anterior e terminava por um novo “cliff-hanger”, uma nova situação precária, de extremo risco para o herói ou seus aliados.  O rádio tinha também suas séries de aventura e suspense com heróis brasileiros como Jerônimo, o herói do sertão. Depois veio a televisão com séries, importadas na maioria, que traziam episódios completos. E finalmente, as novelas, estas sim com os seus diversos “cliff-hangers” de episódio em episódio captando a atenção do público e garantindo a continuidade da audiência.

Espelhando a forma da ficção, a vida política no Brasil hoje se transforma num seriado ou novela com o repetido anúncio do golpe de Jair Bolsonaro e o retorno anunciado, e ardentemente desejado pelo presidente acidental, da ditadura militar. 

Uma novela ou, como observamos anteriormente, uma ópera-bufa, quer dizer, uma espécie de paródia ou farsa com atores improvisados, personagens reais representando papéis que não lhes cabem. Como, por exemplo, o papel de presidente pelo ex-deputado do baixo clero, ex-militar, ex-conspirador contra a cúpula das forças armadas, amigo e incentivador de milicianos, etc..  Igualmente inadequado o papel de protetores da integridade da nação e da ordem constitucional pelas atuais Forças Armadas que assistem aparentemente impassíveis o assalto ao estado pela extrema direita, a pilhagem interna e externa e a subordinação do país ao poder norte-americano.  Como coadjuvantes: o sistema judiciário brasileiro que teve papel importante para o bom andamento do golpe de 2016, sem mencionarmos o papel fundamental da imprensa monopolizada e partidária, dos empresários e comerciantes que assistem e aplaudem (pasmem, senhores!) o empobrecimento da população, etc.

Em suma, se o Brasil fosse uma produção cinematográfica ou de TV haveria de dispensar o diretor de “casting” por absoluta falta de competência na escolha dos atores. O momento atual é como uma produção barata, improvisada, roteiro ruim, péssimos diálogos, trama inverossímil e, no entanto, é a realidade que se impõe como flagelo para a maioria e para a nação como um todo, sua história, suas instituições, uma nação precarizada, autofágica, com uma “elite”, quer dizer, uma classe dominante neocolonial que aposta no pior para manter seu domínio.

Apostando na ditadura neoliberal, que vem se instalando desde o golpe de 2016, na violência, na espoliação sem limites, a classe dominante brasileira afirma seu controle, mas revela, ao mesmo tempo, sua debilidade de lumpemburguesia, periférica, subordinada, escancarando sua liderança espúria e incompetente para o tamanho, as necessidades, a complexidade do país e do mundo em que vivemos.

Jair Bolsonaro comanda uma manifestação de minorias fascistas organizadas e subvencionadas, pede o retorno da ditadura militar em frente ao palácio presidencial e desfila com as bandeiras dos Estados Unidos e de Israel na sede do governo da República Federativa do Brasil, como se sua legitimidade e poder fossem corroborados, garantidos por Trump e o estado, designado por muitos como neocolonial, de Israel.

Uma cena grotesca, emblemática do golpe em curso e, como pretensa manifestação de autoridade, comando e poder efetivo, reveladora de fatos das fragilidades, das dificuldades, muitas e graves, de Bolsonaro e, em consequência, do alongado processo golpista na sua fase atual.

Afinal, como acertadamente observa o jornalista Florestan Fernandes Jr., quem tem de fato o apoio das Forças Armadas para o seu golpe pessoal não tem razões para buscar o apoio do centrão e de mortos-vivos políticos como o Sr. Roberto Jefferson, de reputação conhecidamente não-ilibada, e personagens semelhantes.

Que existe método na loucura de Jair Bolsonaro, seguramente. Mas metodologias equivocadas nunca dão resultados corretos. Aliás, a coerência extrema é algo próprio de distúrbios mentais graves de inadaptação à realidade. A insanidade mental é por natureza inflexível, o insano não tem como adaptar seu comportamento à dinâmica das situações.

Jair Bolsonaro tenta manipular a mídia, as instituições, cria atritos, embates, crises permanentes, joga com imagens e projeções para ameaçar, intimidar e representar um poder que não pode, no momento, exercer.

A estratégia dá alguns resultados, pois há os que se deixam repetidamente intimidar ou surpreender, há os que reproduzem as imagens calculadas como meros registros de fatos e assim, querendo ou não, participam da trama. É uma aposta com seus riscos evidentes. Num determinado momento o jogador terá que mostrar suas cartas ou deixar o jogo.

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