MACUNAÍMA SÉCULO XXI
Marcelo Guimarães Lima
Nota: este texto amplia a postagem anterior publicada neste blog sobre a condenação de Walter Delgatti
Walter Delgatti, o homem que, por iniciativa própria e mostrando
coragem pessoal, revelou os crimes da Lava-Jato, numa terra onde o
tacão de ferro da oligarquia incentiva condutas covardes e
absolutamente irresponsáveis por parte dos amigos, apaniguados e
servidores, e mesmo por alguns dos chamados "opositores"
oficiais, Walter Delgatti está preso e agora condenado a 20 anos de
reclusão.
Estão soltos: Sérgio Moro, Deltan Dalanhol, o
mandante ou os mandantes do assassinato de Marielle Franco, generais
golpistas, a turma toda da República de Curitiba, juízes que
apoiaram o golpe de 2016, policiais que atiram e matam moradores de
comunidades periféricas, os mandantes e comandantes destes
policiais, empresários que dão grandes golpes na praça, a família
Bolsonaro e seus cúmplices e associados, grandes sonegadores do
fisco, donos de latifúndios que invadem terras públicas e terras
indígenas, traficantes de armas, os articuladores e os líderes do
golpe de 2016, os grandes manipuladores da comunicação de massas,
agentes do estado colaboradores da potência estrangeira, milicianos,
religiosos que apoiam e articulam a extrema-direita golpista,
assassinos de indígenas, grileiros, assassinos de negros, etc.
Esta
lista é necessariamente incompleta. Os leitores podem, caso desejem,
acrescentar nomes e designações.
Macunaíma era um herói
sem nenhum caráter pois multiforme e personagem periférico da
grande civilização branca-colonial da história multicentenária
brasileira. Em termos pós-modernos poderíamos talvez dizer que
Macunaíma encarnava a “diferença” como tal, era múltiplo, era
igualmente híbrido e marginal, outro de si, a metamorfose
perambulante da canção popular, estrategista espontâneo das
classes e dos povos subalternos, sua falta de caráter designava o
lugar onde o olhar dominante se desfocava, designava o negativo da
afirmação da dominação com seus professos valores e
perspectivas.
De outra origem e natureza, penso eu, é a
manifesta ausência de caráter na vida pública brasileira (e
correlativamente na vida privada dos dominadores) como uma espécie
de norma implícita, impositiva, dos atuais herdeiros do poderio
escravocrata na história remota do país, que se autoperpetua
simbólica e materialmente na modernidade e na pós-modernidade
brasileiras.
Para a classe dominante brasileira, fiel às
suas origens coloniais, tudo é permitido. Segundo o dito
dostoiéwskiano: Deus está morto, portanto, tudo é permitido. Mas,
numa sociedade que se acredita profundamente “espiritualizada”,
Deus, o garantidor da moralidade e da lei e da ordem, não pode
morrer. Deus é cooptado no sistema de compadrio dos mais iguais, e
assim tudo é permitido aos de cima. A moralidade pública tem donos
privados que fazem valer seus direitos seculares de “uso e
abuso”.
A classe dominante e sua justiça proclamam no
país que um dia já foi a pátria de Macunaíma: nenhum gesto de
coragem cívica será tolerado, nenhuma virtude pública passará
impune, nenhuma iniciativa de firmeza moral deixará de ser coibida
por todos os meios. Atos pelo bem comum, não importa se com ou sem
intenção, serão duramente castigados como atos escandalosos e
perigosos que são, pois, acima de tudo, ameaçam o sistema universal
estabelecido da malversação, da fancaria, da manipulação e da
hipocrisia premiadas.
Queiram ou não, Walter
Delgatti é o nosso Julian Assange. A iniciativa de monitorar e
revelar a podridão moral, ética e a destruição do nosso precário
sistema legal pela operação Lava-Jato, da qual foi cúmplice por
ação e omissão o sistema judiciário brasileiro e seus
responsáveis, o sistema político e a imprensa num conluio de
interesses pecuniários e ideológicos anti-povo e anti-nação, esta
iniciativa de Walter Delgatti permitiu a derrocada do projeto
autoritário expresso na chamada “República de Curitiba” e
contribuiu de forma definitiva para o recuo do neofascismo e a
vitória das forças populares na derrota de Bolsonaro em 2022.
Mas
a vitória das forças populares não está de modo algum
consolidada, os embates seguem e a resistência da oligarquia
brasileira (o seu “golpismo estrutural”) não será derrotada sem
que seus instrumentos de poder, na estrutura política, nas
comunicações, na (des)ordem econômica, sejam retirados,
modificados e redirecionados para o controle democrático da maioria
do povo brasileiro.
Até lá, precisamos de todas as
iniciativas que favoreçam a luta contra a oligarquia e sua ditadura
de fato. As ações de Walter Delgatti se inserem objetivamente no
contexto de grandes contradições da conjuntura nacional que gerou o
golpe de 2016, a eleição do presidente neofascista, a tragédia da
presidência de Bolsonaro, e os embates atuais nas fileiras da classe
dominante brasileira. A luta interna ao sistema político atual
contra o bolsonarismo serve, igualmente, para desviar o olhar a
respeito do papel do golpe de 2016 e seus agentes no projeto em
marcha da consolidação da “pós-democracia” brasileira,
chamemos assim, caridosamente, o regime atual e suas
ambiguidades.
Walter Delgatti, assim como Julian Assange,
cada um a seu modo e em seus contextos diversos, participaram e
participam de forma objetiva do mesmo combate contra as mentiras e
manipulações das massas, contra a corrupção material e moral que
sustenta o poder das oligarquias regionais e globais. No caso de
Delgatti, mesmo a sua cooptação pelo bolsonarismo no contexto de
suas dificuldades e ambiguidades pessoais, não desfaz o papel que o
que podemos designar como “astúcia da pequena história local”,
a ironia objetiva dos fatos e seus contextos, lhe reservou na luta
contra o neofascismo, malgrado as limitações, e aqui deixamos de
lado as aparentes facilidades do julgamento imediato, tanto suas
como, mais importantes, as mais que evidentes limitações cognitivas
de seus aliciadores.
Devemos, portanto, apoiar Walter
Delgatti contra a sua condenação de cunho ideológico mais do que
evidente. A omissão no seu caso é objetivamente aquiescência ao
poder da oligarquia, cuja efetiva falta de caráter, quer dizer, na
linguagem de todos os dias, a falta de vergonha mil vezes demonstrada
no cotidiano e na história, contamina como doença mortal a
sociedade brasileira.
https://aterraeredonda.com.br/walter-delgatti/
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