Fazer o tempo (kayrós)
Marcelo Guimarães Lima
Salvador Dalí - A persistência da memória, 1931
Notícias de que Bolsonaro teme ser preso ao retornar ao Brasil são apresentadas na internet e na imprensa, ao mesmo tempo em que se reporta a disposição, dita cautelosa, da justiça brasileira quanto à prisão imediata do ex-presidente fujão: não seria o momento.
Ora, se existem dificuldades para a prisão de
Bolsonaro, outras existem, e talvez maiores, em deixar em liberdade
quem ao longo de seu mandato pregou a subversão da ordem legal
existente, já agredida pelo golpe de 2016, e, deste modo, insuflou,
preparou a turba neointegralista para a destruição de prédios
centrais do poder público em Brasília como uma espécie de ensaio,
ou abre-alas para um golpe unindo a extrema-direita e o poder
militar.
Ou Bolsonaro teme realmente ser preso, ou não
teme. Ou a justiça brasileira quer de fato responsabilizar
Bolsonaro, ou não quer. Como já se tornou habitual, no midiático
jogo das narrativas tudo soa possível: o sim e o não confundidos,
tudo e seu contrário, e ao mesmo tempo. Após a surpresa da
violência preparada e fartamente anunciada, a desorientação via
desinformação programada parece surgir como segundo ato de uma
tragi-comédia à brasileira.
Nos vídeos, cada vez mais
numerosos nas redes, dos “cidadãos de bem” bolsonaristas
cometendo crimes contra o patrimônio público e contra a ordem
política legal do país, vemos cidadãos da classe média, baixa e
alta, ao lado de representantes de estamentos marginalizados, junto a
provocadores profissionais, ex-presidiários, políticos da
extrema-direita, pastores e seus fiéis, membros das forças armadas
numa espécie de carnaval trágico encenando algo como uma “(contra-)
revolução fascista”, minoritária, mas organizada e financiada do
exterior dos grupos em ação, e contando com a cooperação de
forças de segurança e das forças armadas.
Por um lado,
a volta em liberdade de Bolsonaro ao Brasil, como mais um viajante
ordinário, seria como um chamamento à turba para novas arruaças e
violências. Claro está que muitos dos protagonistas do 8 de
janeiro, como mostram alguns vídeos, acordaram como de um transe
para a dimensão e consequências das suas ilusões e ações no
mundo real: a prisão lhes serve de escola e é um eficaz elemento de
dissuasão para novos ativismos e para novos ativistas. Mas o núcleo
dos mandantes e organizadores ainda não foi atingido, e não vai se
deixar abater por um revés, o qual, como extremistas que são, devem
acreditar temporário na guerra contra a sempre periclitante
democracia brasileira, até que lhes seja devidamente estabelecida
uma derrota conclusiva na atual conjuntura.
Esta se faz
mais problemática com o passar dos dias. Pois, como mostrou o golpe
de 2016, a prisão de Lula, a eleição de Bolsonaro, a direita
brasileira se articula com a extrema-direita sempre que seja
oportuno. Não é demasiado repetir que Bolsonaro e seu desgoverno
foram, entre outros fatores mas de modo central, produtos de decisões
do establishment político brasileiro, ou seja, da direita em seu
conjunto e seus meios aliados, na guerra santa contra Lula e o PT
enquanto representantes das classes populares.
As décadas,
os anos e o século passam, mas o golpe de estado, a violência
contra as nossas sempre instáveis instituições democráticas, e,
portanto, contra a vontade popular, parece ser recurso
permanentemente disponível e facilmente atualizado na vida política
no país. Assim como o “transformismo”, o processo miraculoso que
transforma, da noite para o dia, golpistas, autoritários e ladrões
do erário em defensores ardentes da ordem democrática e vestais do
republicanismo (e que pode igualmente transformá-los em outros
sentidos, ao sabor dos ventos).
A derrota da micareta
golpista seria ocasião para dar um basta e mudar o registro da vida
política brasileira, deixar definitivamente para trás, ao menos nas
suas formas mais imediatas e obscenas, a truculência autoritária e
a enorme hipocrisia que caracterizam as estruturas de dominação de
classe no Brasil. E mesmo uma tal mudança “exterior” ou de
superfície já seria um avanço, pois toda superfície é solidária
a uma estrutura interna e mudanças externas se refletem de modos
vários nas dimensões profundas.
Mas no país do
transformismo e da irresolução como modo de vida, não é claro o
que realmente se produzirá desta súbita conversão, do súbito
ardor democrático de gregos e troianos, muitos até ontem aliados do
Capitão do Caos ou críticos retóricos e opositores imaginários do
neofascismo caboclo.
Bolsonaro sem a caneta na mão é, para os comensais do poder, uma
sombra do que acreditou ser até ontem. A marginalidade institucional
que conheceu como político do baixo clero poderá ser seu futuro
mais uma vez. Se futuro tiver, pois, aqui também, o que há de certo
é que entre a retórica do Capitão do Caos e suas capacidades de
fato para ações “grandiosas”, a distância se mostrou abissal,
decepcionante para os que tinham sido chamados reiteradamente para a
guerra abortada. Os generais órfãos da ditadura militar cedo ou
tarde deverão buscar outros prepostos e talvez outras máscaras.
As
estruturas que alimentaram o episódio Bolsonaro e o bolsonarismo
deitam raízes na história do país e decisivamente na conjuntura
histórica geral do tempo. O que absolutamente não quer dizer que a
conjunção do atraso político (que inclui ataques repetidos à
soberania nacional) com a de facto ditadura neoliberal atual
seja nosso destino, pois, cabe lembrar, somos também o país no
qual, com todos os percalços, contradições, impasses e limitações,
um líder operário se tornou líder popular e nacional.
Lula
venceu seus algozes e com apoio popular voltou ao poder para fazer
face à crise que a classe dominante cultivou até o impasse
presente, num contexto mundial de profundos desequilíbrios
econômicos e políticos, para os quais as chamadas elites
brasileiras não têm respostas outras que o perene autoritarismo, a
continuada expropriação da maioria e a violência sob máscaras
cada vez mais diáfanas.
A aventura neofascista terminou
por desnudar em praça pública o autoritarismo crônico secundado
pelo partido militar e a violência como método. Espetáculo
demasiado obsceno que, por um lado, precisa ser exorcizado por todos
os meios para a continuidade da “democracia tutelada” pelo
neoliberalismo radicalizado surgida do golpe de 2016.
Por
outro lado, com todos os desafios e dificuldades da conjuntura atual,
o 8 de janeiro pode também, e aqui somos otimistas por necessidade e
escolha, marcar o início de outro processo e projeto de democracia,
aquela que, contra os donos do país e seus cúmplices e servidores,
não teme dizer seu nome e seu real significado de soberania popular
efetiva.
fragmento de relevo por Lísipo (séc.IV a.C.)
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