Do golpismo como vontade e representação

Marcelo Guimarães Lima




Tal como as arruaças recentes em Brasília, amplamente anunciadas e convenientemente ignoradas pelas autoridades locais, se há algo que não surpreende, mas que é sempre constrangedor de assistir é a absoluta falta de originalidade da extrema-direita brasileira. Os integralistas copiavam Mussolini e o nazismo, eram “nacionalistas” de ópera bufa, representavam o “agronegócio” da época, aliciavam parte da pequena-burguesia reacionária e racista, e tinham adeptos também entre a população mestiça do Brasil. O modelo nazista tomava aqui formas burlescas para o contexto, não apenas as ideias estavam algo fora de lugar, mas também os uniformes e toda a parafernália simbólica e ritual do modelo nazi-fascista sofria, por força das circunstâncias na periferia semi-colonial, algo como um processo inconsciente de “carnavalização”.

A repetição farsesca em Brasília do ataque trumpista ao Capitólio mostra, além da falta de imaginação e inteligência de Bolsonaro, seus financiadores e seus generais, a incapacidade de ver além do próprio umbigo e desenhar uma estratégia minimamente racional para os seus objetivos. Quer dizer, uma estratégia que equacione fins e meios, que leve em conta, de modo minimamente objetivo, o contexto local e internacional e os possíveis desdobramentos do voluntarismo neofascista made in USA, após os desastres do desgoverno do Capitão do Caos e as dificuldades atuais dos seus mentores e do trumpismo nos EUA.

Desde que assumiu o poder numa eleição administrada por generais e pelo núcleo duro da classe dominante brasileira, Bolsonaro prometia o golpe, afirmou que não sairia do poder se derrotado na eleição vindoura, prometeu acabar com vida minimamente civilizada no país, implantar a sua ditadura, eliminar a “esquerda” genérica, oprimir minorias, fazer definhar a vida cultural e científica, destruir a universidade pública, impor a cartilha neofascista na educação, nos costumes, na política como no cotidiano. Certo é que a destruição foi grande, o exemplo, um entre muitos, das quase 700 mil vítimas fatais na pandemia é estarrecedor, homens, mulheres e crianças, brasileiros e brasileiras vítimas da crueldade e da ganância neoliberal-neofascista.

Mas em tudo o que fez, Bolsonaro mostrou sua enorme incompetência, sua absoluta incapacidade para o grandioso papel que ele próprio se atribuía, secundado pelos generais órfãos da ditadura militar, pela turma da Faria Lima, pela chamada grande imprensa enquanto defensora intransigente dos interesses da classe dominante brasileira.

Tudo o que fez Bolsonaro teve a marca da improvisação, em contraste ao discurso acabado, cujo poder de convencimento em grande parte se baseava justamente na indigência conceitual e na repetição ad nauseam para uma plateia pronta, nas suas instabilidades e perplexidades cotidianas, para receber respostas fáceis e reconfortantes para a sua própria situação precária de miséria moral e material em tempos neoliberais.

Enquanto escrevo, a internet anuncia o repúdio universal ao quebra-quebra fascista em Brasília, repúdio no exterior, incluindo o presidente dos EUA, e internamente também por representantes da direita que apoiaram o golpe contra Dilma, a prisão ilegal de Lula e a eleição de Bolsonaro, e mesmo por aliados até ontem de Bolsonaro.

Como tentativa de golpe, apesar da evidente preparação e amplo financiamento, e da escandalosa, mas previsível conivência de autoridades do Distrito Federal e outras e das forças policiais, as marcas da improvisação política e do voluntarismo que, por assim dizer, “põe o carro na frente do gado” são mais que evidentes. Neste momento, o episódio cumpre mais o papel de catarse fascista, iniciativa que se esgota na “passagem ao ato” simbólica. Como intervenção golpista parece indicar algo como um último estertor, tentativa ampla de intimidação e imposição que se revela, ao final, no atual contexto político, como imagem de ambição desmesurada e impotência de fato.

Claro está que o que virá na situação politica do país vai depender de respostas efetivas, para além da retórica liberal-democrática, contra as forças golpistas atuantes hoje, como “habitualmente”, na vida nacional, contra os mandantes, apoiadores, financiadores, mentores e participantes diretos e indiretos, por atuação ou inação, deste episódio e de todos os episódios que prepararam a presente reprodução farsesca do Capitólio trumpista.

Lá e cá, guardadas as devidas proporções e especificidades entre a democracia-modelo e sua reprodução imperfeita na periferia, é possível perceber algo como uma generalizada desorientação das instituições da democracia liberal em permanente crise de adaptação ao neoliberalismo. Entre a superestrutura ideal liberal-democrática e a infraestrutura material neoliberal as contradições se manifestam mais e mais intensas, graves e urgentes tanto no centro como na periferia do sistema mundial.

No que diz respeito à conjuntura brasileira, é certo que a chamada “preservação da democracia” não vai se dar sem um aprofundamento de práticas democráticas de fato na vida nacional. A resposta efetiva ao que chamei de “golpismo estrutural” (1) virá da mobilização popular, ou teremos a perpetuação, sob diferentes formas, dos ciclos golpistas herdados do século XX. Neste sentido, a crise presente é também oportunidade que nos pede imaginação e iniciativas.


(1) https://aterraeredonda.com.br/como-dois-e-dois-sao-cinco/





"Nacionalistas de ópera-bufa"



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