Em carta ao secretário-geral da ONU, Adolfo Pérez Esquivel diz que órgão ‘é um farol apagado’
Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz 1980
Aos 90 anos de idade, Adolfo Pérez Esquivel mostra que é um homem à frente do seu tempo e prova, mais uma vez, porque é merecidíssimo o seu Prêmio Nobel da Paz.
Ele o faz em carta dura, corajosa, ao secretário-geral das Nações Unidas, Antonio Guterres, sobre o conflito envolvendo Rússia e Ucrânia.
Esquivel não usa meias palavras:
“Hoje ONU é um farol apagado, que não consegue iluminar o rumo de uma saída justa, uma esperança para a humanidade”.
“É preciso ajudá-la [a humanidade] a acender a luz da ONU para encontrar alternativas ao diálogo, não apenas entre os países envolvidos no conflito, mas com potências como os EUA, a UE e a OTAN”.
“EUA, a UE e a OTAN são responsáveis de impedir o diálogo para pôr fim à guerra”.
Esquivel dá um puxão de orelhas na ONU pela suspensão da Rússia do Comitê de Direitos Humanos:
“Suspender a Rússia do Conselho de DDHH é um erro. Foi uma decisão que os EUA impuseram à maioria dos países. A ONU deve estar a serviço da paz e dos direitos dos povos”.
“É necessário levar em conta o preâmbulo da ONU quando proclama “Nós, os povos das Nações Unidas, decididos …”
É necessário retornar às fontes dos princípios e objetivos da ONU, a seu compromisso de construir a paz e os direitos dos povos”.
Abaixo, a íntegra da carta.
Sr. Secretário Geral da ONU, Sr. Antonio O. Guterres
Receba a saudação fraterna de Paz e Bem, que a humanidade tanto necesita nestes momentos de angústia e tensões pelos quais está passando, como a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, que coloca em risco não só a vida dos povos, mas a vida planetária, em vista do aumento do conflito e da violência. O senhor sabe que há outros atores involucrados, os quais pretendem apagar o incêndio com mais combustível, e não querem paz.
Eu tenho que lhe dizer que hoje a ONU é um farol apagado que não consegue iluminar o rumo de uma saída justa, uma esperança para a humanidade. É preciso ajudá-la a acender a luz da ONU para encontrar alternativas ao diálogo, não apenas entre os países envolvidos no conflito, mas com potências como os EUA, a UE e a OTAN, que são responsáveis de impedir o diálogo para pôr fim à guerra.
Tenho de dizer-lhe, além disso, que suspender a Rússia do Conselho de DDHH é um erro. Foi uma decisão que os EUA impuseram à maioria dos países. A ONU deve estar a serviço da paz e dos direitos dos povos. Hoje, infelizmente, os povos estão ausentes das decisões tomadas pelos governos e mais ainda das políticas impostas que o Conselho de Segurança controla. É necessário levar em conta o preâmbulo da ONU quando proclama “Nós, os povos das Nações Unidas, decididos …”
É necessário retornar às fontes dos princípios e objetivos da ONU, a seu compromisso de construir a paz e os direitos dos povos.
Não estou defendendo a Rússia e sua invasão à Ucrânia, sua responsabilidade e o custo em vidas humanas, a destruição de cidades e o exílio do povo ucraniano, vítima da violência tanto da Rússia como do governo da Ucrânia.
Tudo que foi feito dói na consciência e no coração da humanidade e devemos trabalhar para construir a paz, hoje ferida pela crescente política de hostilidade das potências que não contribuem em nada para a solução do conflito e, pelo contrário, estão empurrando a guerra para a beira do precipicio, com graves e imprevisíveis consequências para o mundo.
Não vou ser reiterativo naquilo que o senhor já sabe, mas eu quero apontar para o filólogo e pensador Noan Chomsky, que faz um estudo profundo sobre a guerra entre a Ucrânia e a Rússia e dos interesses dos EUA, que dominam e impõem sua política global, mesmo na ONU, onde, com a violação da tão proclamada soberania e com seu duplo discurso, não respeitam o direito internacional e, ainda menos, as resoluções da ONU; em que seu intervencionismo em países invadidos acarreta desolação e morte.
Nós, os povos do mundo, queremos a paz e pedimos o fim da guerra. Não somos espectadores para terminar sendo vítimas da violência. Nos assumimos como protagonistas de nossas próprias vidas e construtores de nossa própria história, exigimos unidade na diversidade. Nos lembramos do que foi vivido e sofrido em duas guerras mundiais, nos genocídios e no Holocausto, nas 25 guerras de alta e baixa intensidade que persistem no mundo, nos bloqueios econômicos e na fome generalizada dos povos vítimas de políticas nefastas que destroem suas vidas.
Sr. Guterres, sinto ter de me expressar tão duramente diante da situação que a humanidade vive. Venho trabalhando dia a dia há muitos anos com os setores mais carentes que reivindicam a defesa de seus direitos humanos, os direitos dos povos, e que não podem estar nas mãos dos genocidas que lhes roubam a vida e a esperança.
O que semeamos hoje é o que vamos deixar para as gerações que nos vão suceder. Temos de optar entre bombas ou a paz.
Um antigo provérbio diz: “A hora mais escura é quando o amanhecer está começando.” Ainda temos tempo para ver o amanhecer.
Adolfo Pérez Esquivel
Prêmio Nobel da Paz 1980
Buenos Aires, 10-4-22
*Adolfo Pérez Esquivel, ativista argentino referência na defesa dos direitos, ganhador do Prêmio Nobel da Paz.
Tradução: Jair de Souza
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