Crianças brincando em situações extremas.

 Marcelo Guimarães Lima




A escritora Marilene Felinto publicou recentemente na Folha de S. Paulo um texto bastante incisivo repercutindo uma denúncia anônima de racismo por uma cientista social a propósito de um livro infantil de José Roberto Torero e Marcus Pimenta: Abecê da Liberdade: A história de Luís Gama, o menino que quebrou correntes com palavras, publicado em 2015 pela Editora Objetiva do Rio de Janeiro e republicado pela Companhia das Letras. A vida dramática e combativa de Luís Gama, herói abolicionista brasileiro, é o tema da obra. O livro foi recolhido a partir da denúncia.

Uma passagem claramente incriminatória, segundo a denúncia, seria a que narra brincadeiras de crianças cativas encerradas num navio saído da Bahia para o Rio de Janeiro, destino final para o comércio dessas crianças negras escravizadas. Na narrativa, as crianças brincam enquanto prisioneiras, e brincam, entre outros jogos conhecidos da tradição brasileira, de “Escravos de Jó”, cantiga e coreografia que muitos de nós aprendemos e reproduzimos na infância.

Um caso flagrante de insensibilidade dos autores, segundo a denunciante anônima e segundo a escritora que, em seu artigo na Folha, deixa mais que evidente sua profunda indignação e repulsa ao livro.

“Sintomático, escreve Marilene Felinto, que a primeira ponderação da cientista indignada com o texto infame —um livro para crianças, que distorce e minimiza a história da escravidão negra— tenha sido uma analogia: e se o tema fosse os judeus, a história do holocausto, qual seria a repercussão?”

Ao apresentar crianças negras escravizadas brincando no contexto cotidiano da violência e do genocídio do tráfico de escravos no Brasil, os autores minimizam a opressão sofrida e distorcem a história, segundo a escritora, produzem um texto flagrantemente racista, algo que, segundo a denúncia, seria imediatamente evidente e escandaloso se se tratasse, por exemplo, do destino das crianças judias no holocausto dirigido pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial.

Ocorre que o comportamento lúdico de crianças judias no contexto dos horrores dos campos de concentração na Alemanha nazista já foi objeto de estudo pelo pesquisador norte-americano George Eisen, publicado em 1990 pela University of Massachusetts Press: Children and Play in the Holocaust: Games among the Shadows (Crianças e Brincadeiras no Holocausto: jogos em meio às sombras).





O que despertou o autor para o tema do seu livro foi a leitura fortuita do diário clandestino do intelectual judeu Zelig Hirsch Kalmanovich narrando o dia a dia do Gueto de Vilna na Lituânia. Em 1942 o diário registra que a comunidade cria um playground (parquinho) para crianças e jovens, e o autor do diário expressa seu conflito subjetivo, sua inquietação pessoal de participante e testemunha, a respeito da coexistência cotidiana no gueto de brincadeiras e jogos esportivos junto com a tragédia da violência nazista: confinamento, humilhação, deportações, penúria extrema, assassinatos à luz do dia, genocídio.

Eisen teve parte de sua família exterminada nos campos de concentração. Ao conhecimento dos relatos familiares sobre o holocausto judeu, as narrativas de sobrevivência, deportações, extermínio de coletividades, resistências e fugas, George Eisen somou extensa pesquisa sobre a infância nos campos de concentração e enfrentou o desafio, como explica, da objetividade científica frente ao tema.

Eisen descobriu que as crianças de fato brincavam nos campos de concentração como nos guetos, incentivadas pelos adultos como estratégias de proteção psicológica frente aos horrores dos confinamentos urbanos e dos campos de extermínio. As crianças brincavam também, ou principalmente, por iniciativa própria pois o jogo e a brincadeira fazem parte dos processos de desenvolvimento na infância, como meios essenciais de aprendizagem e socialização, como processos envolvendo o corpo, a maturação física, as emoções, as trocas afetivas, os sentimentos, a comunicação, em todos os contextos da infância, e mesmo em situações extremas.

Como é o caso, em tempos recentes, das crianças palestinas em situação de confinamento, penúria e violência. O estudo sobre os comportamentos lúdicos das crianças palestinas em campo de refugiados por Orayb Samara: The Forgotten Childhood of Albaqa’a: Children´s Play in a Palestinian Refugee Camp (A Infância Esquecida de Albaqa’a: Brincadeiras de Crianças num Campo de Refugiados Palestinos ), tese de mestrado apresentada na University of British Columbia em 2005, mostra, segundo a autora, crianças em situações adversas criando ações e estratégias lúdicas como respostas variadas aos múltiplos desafios de sobrevivência física e mental em diferentes contextos, crianças como agentes de seu próprio desenvolvimento, para o qual, mesmo em situações extremas, os jogos e brincadeiras realizam um papel fundamental.

Do modo semelhante, Eisen sublinha o significado da brincadeira como forma de adaptação, mesmo em condições extremas de sofrimento e risco de morte, e concomitantemente como forma de resistência pessoal e coletiva. Crianças judias se dedicavam, por exemplo, ao estudo e leituras que eram proibidos nos campos de concentração, sob o disfarce de brincadeiras e jogos. Acobertavam com seus jogos ruidosos ações dos adultos que burlavam as normas impostas aos prisioneiros.

O relato de brincadeiras onde as violências cotidianas dos campos de concentração nazistas eram recriadas com seus personagens imaginários de vilões e vítimas, opressores e oprimidos, é inquietante. A imagem de crianças brincando nas proximidades dos fornos crematórios é, sem dúvida, chocante para todos nós. Índice aparente de inconsciência e fragilidade da condição da infância aprisionada e marcada para a morte industrializada do regime nazista, estes mesmos fatos testemunham tanto a crueldade extrema da opressão racista com sua desumanização do “outro” que não poupa nem mesmo crianças, como a afirmação da capacidade de resistência humana, a invenção, sob condições de extrema crueldade e opressão ,de estratégias de autopreservação, de iniciativas de solidariedade e partilha, de atenção e cuidado entre as crianças e entre estas e os adultos, de exercício de imaginação não como simples “fuga da realidade”, mas como afirmação de si, resistência, afirmação de capacidade intelectiva e emocional de compreensão e reação às adversidades.

Os dois autores citados, cada um em seus contextos respectivos, sublinham as dificuldades pessoais da investigação de um tema frente ao qual não podemos evitar reagir de modo visceral, que afeta nossa capacidade de compreensão e autocompreensão sobre o universo humano e consequentemente sobre a nossa própria humanidade como, talvez, simples “máscara” de uma violência sem limites prestes a irromper na ocasião “propícia”. O tema da crueldade extrema contra a infância nos desafia a todos, mas o que se ressalta destes estudos é a complexidade da vivência e da experiência infantil em contextos de violência e opressão, a perspectiva afirmativa da vivência infantil mesmo na tragédia.

Neste sentido, penso que a supressão do livro Abecê da Liberdade, fruto de uma reação primeira, é algo a ser revisto, repensado e sobretudo debatido. A reação visceral de alguns leitores pode ser compreensível pela natureza da temática da escravidão no Brasil, a temática da desumanização e exploração das assim chamadas “minorias”, sobretudo no atual contexto regressivo e opressivo em que vivemos, mas é insuficiente como fundamento de ação na esfera pública. Esta exige mais reflexão e conhecimento.

Reflexão e conhecimento que dão base à dúvida como método, dúvida que tem por fundamento inicial, como observava Sartre, teórico consistente da liberdade, a dúvida de si. Pensar contra si mesmo, era o método preconizado por Sartre: reagir contra a nossa espontaneidade “profunda”.


Eis aí um exercício difícil, sobretudo nestes tempos onde as tecnologias de comunicação favorecem as reações imediatas e as trocas emotivas entre os que partilham convicções ou certezas e assim, paradoxalmente, transformam em solipsismo universal o que deveria ser diálogo, isto é, troca de perspectivas diversas no fundamento comum dos valores da inteligência e da solidariedade.










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