Os discípulos do Dr. Pangloss na Terra-do-Nunca
Marcelo Guimarães Lima
Augusto Boal, um dos grandes nomes do teatro brasileiro e universal, narra que quando de sua prisão pela ditadura militar foi interrogado e brutalmente torturado. Segundo seus torturadores, ele estava sendo punido naquela sessão de tortura por ter, como militante de oposição à ditadura, em viajem ao exterior espalhado mentiras sobre a prática de torturas pelo regime militar no Brasil.
Conta Boal
que, momentos antes do bárbaro suplício corporal e da indescritível dor e o terrível
sofrimento que lhe infligiram, não pode deixar de apreciar e sorrir da ironia
da situação: torturadores negando a tortura ao praticá-la.
O recente comunicado
no qual a atual cúpula das forças armadas reage com estudada indignação a uma
fala relativamente inócua e algo oportunista do senador que preside a CPI da
Covid, me lembrou esta passagem das memórias do grande artista brasileiro. O
documento expressa uma lógica semelhante. Como no famoso conto infantil, o rei
está nu e todo mundo vê, mas o poder real dita a todos que vejam o oposto: o
rei está suntuosamente vestido!
A carta dos
militares é, como afirmaram alguns jornalistas, mentirosa, tosca e devidamente
clara na intenção de impedir os trabalhos da CPI que trouxe ao conhecimento
público o papel de militares nas obscuras, ilegais e fatais tratativas, no jogo
mesquinho e escandaloso de interesses privados, de práticas criminosas e improbidades
do desgoverno Bolsonaro no desastre nacional da pandemia. Para o atual governo, seus aliados e
servidores, a cifra de meio milhão de morto não diz muita coisa, são apenas
números. E os únicos números que comovem de verdade estas pessoas são os números
de contas bancárias e seus saldos, guardados aqui ou no exterior.
Os
militares servidores de Bolsonaro e de seu projeto neofascista de poder se
apresentam como vestais imaculadas, criaturas de exceção acima da plebe ignara (todos
nós) que forma este povinho ingrato, faminto, despossuído e, portanto, apto apenas
à servidão, gente mal-agradecida que não considera o árduo trabalho dos milicos
de tutelar um país como o nosso, com sua gente desprezível, inapta e
irresponsável.
Aliás, o Brasil
nem existe, o que existe de fato é uma instituição, as forças armadas, instituição
autônoma, filha de si, pairando no ar, que nada deve ao país e à qual todos
devemos obediência e reconhecimento “por nos deixar respirar, por nos deixar
existir”, como diz (patrioticamente, quero crer) a canção do Chico.
A
nobilíssima, abnegada atividade dos militares é que permite conter em “semi-organização”,
que é a única forma possível de organização para nós brasileiros, este arremedo
de sociedade feita, como dizia o general vice-presidente, de índios
preguiçosos, negros arredios e brancos que nem brancos de verdade são.
Intolerável qualquer suspeita (e mesmo provas) de que alguns militares agem exatamente
como os seus aliados civis de ocasião e se tornam comensais no banquete privado
da riqueza pública que caracteriza o desgoverno Bolsonaro.
Vivemos todos num conto-de-fadas no qual o Brasil é uma democracia, não ouve golpe, a economia está cada dia melhor, o povo contente com o poder do soberano, a pandemia contida, o país integrado na civilização universal, a inflação controlada, etc., etc. Somos todos discípulos do Dr Pangloss: alguns por conveniência, outros por obrigação profissional, outros por constrangimentos e imposições.
Na Terra do Nunca chamada Brasil não existem militares desonestos assim como não existem fascistas no poder.
E quem não concordar pode terminar no
pau-de-arara. Democraticamente.
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