Gaza-Periferia, Gaza-Guernica

Marcelo Guimarães Lima

 


Marcelo Guimaraes Lima

Palestina - Rio de Janeiro II

lápis, lápis de cor, giz de cera sobre papel
21x29cm, 2021



Penso que quem mais sucintamente já explicou o significado, o papel e a natureza da húbris violenta do Estado de Israel foi, e ainda é, Noam Chomsky: “Colonizadores europeus que chegam numa terra estrangeira, se estabelecem e cometem genocídio ou expulsam os povos indígenas. Os sionistas não inventaram nada de novo a esse respeito ”. ( N. Chomsky e I. Pappé – On Palestine,2015)

O Estado de Israel, como fruto de um projeto e movimento colonizador, de certa forma estendeu no século XX, com as devidas particularidades do tempo e de um movimento de uma minoria não organizada em estado na Europa, a história do colonialismo europeu “clássico”: ocupação territorial progressiva por meios diversos incluindo o engano, a cooptação, a violência ou o terror localizado, que a partir de um dado momento se transforma em guerra de subjugação e extermínio.

Uma relativa, e bem concreta nos seus resultados, conjugação de interesses materiais, políticos, geoestratégicos, e o conceito de uma expressa “superioridade cultural” típica da ideologia europeia, por vezes associada no caso particular a uma irracional e absurda “delegação divina”, enseja uma não menos absurda confluência de racismos (pureza biológica, isolamento identitário, exploração e exclusão do outro, hierarquia e dominação entre as raças consideradas desiguais por natureza, etc) entre o poder colonial-imperial europeu, historicamente antissemita, e o movimento sionista.

O Estado de Israel nasce desta particular conjugação, ao mesmo tempo ambígua na sua expressão, contraditória em muitos aspectos e pragmática nos resultados, que explica o sucesso da empreitada, para além das narrativas piedosas e da autoconsciência mistificada de seus agentes e beneficiários.

Colonialismo e imperialismo por procuração: eis aí a definição esclarecedora de Chomsky do papel e das ações de um estado criado em território extraeuropeu no século XX à sombra do poder europeu, com especial participação do poder inglês em adiantado processo de substituição pelo poder neoimperial dos Estados Unidos. Um estado criado numa particular conjuntura do século XX e que subsiste e exerce suas funções, entre elas a agressão contínua e a apropriação territorial contra o povo palestino, graças ao sustento externo dos EUA e seus estados vassalos na União Europeia. O Estado de Israel exerce violência contra o povo palestino simplesmente porque pode fazê-lo, isto é, conta com o apoio dos poderes globais que poderiam evitar guerras e mortes se assim quisessem, mas não querem.

Os recentes bombardeios contra a população palestina se inserem na lógica infernal e repetitiva da história de estado dependente de Israel, não apenas economicamente dependente, mas estruturalmente organizado como tal, cumprindo o papel de auxiliar e substituto do poder central global na região. O domínio da extrema direita na política israelense é mais um aspecto desta condição estrutural que pesa não apenas sobre o povo palestino mas também sobre os cidadãos israelenses que assim se tornam, igualmente, reféns da violência programática, que pagam com vidas, com os custos materiais da guerra interminável, custos desigualmente distribuídos na sua população e com a degradação moral da violência exercida em nome de todo um povo e de seus ideais.


Marcelo Guimarães Lima,

Palestina Blues,
desenho digital, 2011



A ideia sionista foi justificada como resposta ao genocídio dos judeus pela barbárie nazista. A guerra permanente tem caracterizado a existência de Israel na qual a justificativa de “autodefesa” serve para manter o status quo impedindo de fato quaisquer soluções de paz, que necessariamente implicam o reconhecimento dos direitos da população palestina. A alternativa a este reconhecimento é simplesmente o extermínio simbólico e material, o cancelamento de uma história e mesmo a eliminação física de um povo. Processo em muitos aspectos exemplificado na história moderna, por exemplo, na barbárie do nazismo.

Um estado, qualquer estado, definido “racialmente”, por exclusiva “consanguinidade” ou “confessionalmente” se choca necessariamente com a noção e as práticas idealmente universalizantes próprias da cidadania democrática como estabelecidas na história moderna, e isso com todas as restrições e contradições que conhecemos nas democracias “paradigmáticas” da modernidade. Mesmo a democracia realmente existente tem limites que não devem ser ultrapassados sob pena de desnaturar-se e desaparecer enquanto democracia (o que de fato assistimos, segundo alguns autores, na conjuntura da crise global atual).

O que se constata no conflito atual, que opõe um estado fortemente militarizado e armado a uma população sem defesas efetivas, é que são as estruturas e conjunturas históricas, sociais e políticas que explicam os papéis que assumem povos e estados como agressores em circunstâncias determinadas. Interesses materiais concretos comandados pelos grupos dominantes em cada sociedade e tempo se ocultam sob o véu diáfano das “virtudes patrióticas”, da religião, de defesa da “raça”(pseudoconceito que a ciência já desfez), da suposta identidade grupal ameaçada, e fantasias e justificativas semelhantes.



Marcelo Guimarães Lima,

Panorama Palestina,
desenho digital, 2014



Fora dos processos históricos concretos, e mesmo quando podemos distinguir as durações mais longas e as mais breves com suas disposições e heranças específicas, não existem “essências” nacionais, ou culturais, metafísicas e religiosas a definir os papéis e as vicissitudes dos grupos humanos, povos, estados, nações no tempo e no espaço.

Mas história não é apenas feita de determinações dispositivas e impositivas do passado, mas também das escolhas no presente: o que fazer do legado, como avaliar a herança, as circunstâncias herdadas, o conjunto de valores recebidos e que devem ser transmitidos, é dever de todos que adentram na idade adulta e se tornam assim responsáveis por seus atos, assumem a responsabilidade de seus ditos e feitos como indivíduos dotados das capacidades humanas de discriminação e escolha, ou seja, como seres dotados de razão e conhecimento (que é também um dever) e portanto como sujeitos livres nos vários contextos da existência humana cotidiana.

Homens livres, os que não se prostram diante das imposições ideológicas de seus meios, existem por toda a parte. Na comunidade judaica mundial, como em Israel, eles se manifestam enquanto intelectuais, artistas, profissionais diversos, indivíduos privados ou grupos militantes contra a barbárie feita em nome de um povo e de uma história. Noam Chomsky e Norman Filkenstein, nos EUA, Shlomo Sand em Israel, Ilan Pappé, israelense radicado na Inglaterra, são alguns exemplos de intelectuais de coragem e engajamento pelos valores do conhecimento e como cidadãos responsáveis nas suas comunidades, que não vacilam em apontar erros e crimes dos seus concidadãos.


Guernica: a arte confronta máquinas de guerra contra populações desarmadas.




Pablo Picasso

Guernica,

óleo sobre tela, 1937



Em 1937, em plena Guerra Civil na Espanha, o município de Guernica, no País Basco foi arrasado por um bombardeio da aviação nazista alemã que auxiliava os fascistas espanhóis sublevados contra a República. A modesta Guernica não era em si alvo militar mas eventual rota de passagem de tropas que resistiam ao golpe fascista comandado por Franco, e o bombardeio da aviação nazista atingiu, massacrou toda uma população civil despreparada e desprotegida.

Radicado em Paris, Pablo Picasso preparava obras para a representação da república espanhola na Exposição Internacional de Artes e Técnicas na capital francesa. A notícia do bombardeio e destruição de Guernica inspirou o artista a representar o sacrifício absurdo de toda uma comunidade como protesto contra o horror da guerra e da barbárie fascista. A pintura, declarou o artista, não é arte feita para decorar interiores mas uma arma defensiva e ofensiva a ser utilizada contra o inimigo.

Durante a exposição, segundo a narrativa, um oficial alemão na Paris ocupada diante do quadro perguntou a Picasso: “Foi o senhor que fez?”, “Não, respondeu Picasso, foram os senhores.” O quadro-mural de Picasso (medindo 349 cm de altura por 776,5 cm de comprimento), teve grande impacto político e estético na época, repercutiu na vanguarda artística no século XX, simbolizou a causa republicana na Espanha, a luta contra a guerra e a luta mundial contra o fascismo, contra o massacre de populações, contra o horror da guerra total.




Picasso pintando Guernica, por Dora Maar


Perspectivas sobre a Guerra Civil Mundial


Guerra de conquista, guerra de extermínio são distinções que tantas vezes se perdem na realidade cruenta e destrutiva dos conflitos armados opondo povos e estados na história e na modernidade, assim como as designações improváveis utilizadas de “guerras defensivas” ou “preventivas”. O rápido desenvolvimento e a utilização de tecnologias de destruição massiva no século XX culminou com a destruição atômica de Hiroshima e Nagasaki pelos EUA no Japão, igualmente um massacre hediondo da população civil, inaugurando, segundo historiadores, o confronto chamado Guerra Fria, que ativou o potencial da guerra atômica final entre as coalizões comandadas respectivamente pelos EUA e a URSS.

O conflito entre os dois blocos globais opostos, segundo especialistas, após a desaparição do sistema socialista soviético resultou em novos conflitos sobre a hegemonia global, que se manifestam em embates destrutivos localizados nas periferias do sistema. Num mundo onde a globalização é processo tão efetivo quanto contraditório em aspectos essenciais, à luta pela hegemonia global entre estados e associações de estados (e em nosso tempo neoliberal a simbiose entre os estados com suas máquinas de guerra e as corporações ditas “multinacionais”) vem somar-se o que podemos designar como luta de classes global ou guerra civil mundial opondo os detentores globais da riqueza às classes exploradas e espoliadas de nações e regiões várias.


Guardadas as devidas proporções, especificidades históricas e visibilidade, podemos dizer que há hoje uma Gaza em cada uma das periferias do mundo: territórios que sofrem o cerco implacável da miséria, a violência mortífera do apartheid sob justificativas raciais, religiosas, condições e estigmas de classe, etc., que sofrem espoliação e exploração sem limites, condição cujo termo será apenas quando a consciência de que tudo lhes é negado resultar na união dos que por toda parte não tem nada mais a perder a não ser seus grilhões.

Por toda parte, esta consciência se desenvolve hoje, malgrado a repressão, manipulação midiática e censura, nos protestos mundiais contra a guerra permanente contra o povo palestino identificando as condições e as experiências várias de opressão, racismo, violência e apontando as responsabilidades evidentes das estruturas de poder global a respeito de um massacre contínuo que não poderia ocorrer, com observou Chomsky entre outros, sem o apoio destas estruturas.

É possível dizer que o que se pode chamar de “crise totalizante” que vivenciamos no Brasil hoje, com o desgoverno de caráter neofascista e ultraneoliberal de Bolsonaro, sustentado pelo núcleo duro da classe dominante associado ao poder global, é momento particular da crise global engendrada e alimentada pelos donos da riqueza. Gaza-Rio de Janeiro, Gaza-Jacarezinho, Gaza-Periferia, muitas afinidades, mesmo combate!




Marcelo Guimarães Lima,

Palestina - Rio de Janeiro
lápis de cor sobre papel,
21x29cm, 2021






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