A direita e Lula

Marcelo Guimarães Lima



Marcelo Guimarães Lima, 

Os Amantes-  a conciliação ,
(a partir de R. Magritte)
lápis de cor sobre papel, 21x29cm, 2021


Inicio, contando com a benevolência dos eventuais leitores, por uma nota pessoal, uma espécie de, digamos, “confissão”. Foi por volta de 2017, se não me falha a memória,  que, em conversa particular pela rede, eu afirmei a uma grande amiga que a cretinice da direita brasileira toda ela, de FHC aos fanáticos primitivos militares brasileiros, estava criando tal barafunda no país que, num futuro não muito distante, Lula, alvo da sanha golpista, do ódio de classe da lumpemburguesia brasileira e do projeto de cancelamento comandado de fora do país, Lula, o líder popular inconteste da história recente, seria chamado como  o único capaz de desfazer a lambança, medicar o tiro no pé, interromper a autofagia nacional promovida por  uma direita primitiva, acéfala, odiosa nos seus ódios e preconceitos que não poupam nada e ninguém, nem a si mesmos nos casos mais esdrúxulos, do caos criado. 

Diria que a existência da lumpemburguesia brasileira, sua mentalidade e suas práticas, constituem grande desafio à teoria da racionalização de Max Weber segundo a qual o cálculo racional das iniciativas, a sobriedade, o realismo na avaliação de metas e esforços, a adequação dimensionada de meios e fins, constituem o cerne da mentalidade burguesa tal como se desenvolveu no Ocidente moderno. Na perspectiva geral, a lumpemburguesia brasileira parece ser e fazer o contrário de tudo isso. 

Voltando à minha “profecia”: não tenho, infelizmente, print da referida conversa para oferecer aos céticos convictos (aqueles que acreditam na dúvida) ou aos meramente desconfiados. Assim, é facultativo ao leitor acreditar ou não no relato. De qualquer forma, a profecia (original ou apenas recém imaginada) parece em vias de se cumprir. Ninguém menos que a jornalista, mais propriamente a relações-publicas (como se dizia antigamente) ou porta-voz feminina da família Marinho, a sra. Miriam Leitão, declara nas páginas de O Globo que não há equivalência entre Lula e Bolsonaro, que o primeiro é um democrata experimentado, e o atual presidente um extremista de direita cujo programa e as ações tem como finalidade acabar com a democracia, mesmo se for preciso, para tanto, acabar com o país. 

Como uma espécie de militante profissional, isto é, remunerada, de uma organização privada que já foi qualificada por especialistas no assunto como um tipo de “partido ou organização política clandestina” da direita nacional, o texto da sra. Miriam Leitão é, e não é, surpreendente. A direita brasileira que pariu o golpe, o qual pariu Bolsonaro, está desorientada, segundo o tarimbado jornalista Fernando Brito no Tijolaço, com as lambanças do Capitão da Covid em quase todas as frentes onde o desgoverno Bolsonaro toma ou deixa de tomar iniciativas políticas e administrativas. 

Sobre o citado texto da jornalista, o editor do blog Tijolaço afirma, “O que fez Miriam é o que têm feito, cada vez mais, os porta-vozes da direita no jornalismo: conformar-se com que Lula é o remédio à mão para curarmo-nos de Bolsonaro.”

A família Marinho, fiadora do golpe de 2016 e da Lava Jato, parece ter que subitamente se desdizer pela voz da sra. Míriam Leitão e chamar Lula para estancar a enorme crise institucional, política, econômica, crise na qual a direita apostou e que fomentou desabridamente ao longo dos anos em que o PT (e a esquerda em geral) foi transformado no bode-expiatório das mazelas brasileiras. 

Por um lado, tal volte-face deve ser algo difícil para os proprietários da Rede Globo. Por outro lado, talvez não seja de todo. Aqui o cinismo pode muito bem tomar ares de “racionalidade instrumental” e é possível desdizer-se hoje, para reafirmar amanhã o que foi dito ontem ou trasanteontem, conforme novas circunstâncias. 

Poderíamos dizer do texto de Miriam Leitão, texto “pobre” segundo Fernando Brito, que ele é exemplar nas suas insuficiências de forma e fundo, ou seja, no que diz, no que acredita dizer, como diz ou não diz, no que quer dizer ou no que quer insinuar sem muitos resultados, naquilo que o texto confunde, se confunde e no que, finalmente, se autojustifica, justificando o patrão e a direita, que é de fato a finalidade e característica essencial do chamado jornalismo da chamada “grande imprensa” no Brasil. 

Na verdade, dizer que o texto da porta-voz dos Marinho é insuficiente é dar crédito demasiado ao improviso. A jornalista fala de si com a imodéstia característica dos profissionais bem remunerados da chamada grande imprensa. Por equidistante, lúcida e magnânima em suas críticas “justas” ao PT, foi vítima de agressões indevidas, nos lembra com a devida emoção. Indiretamente, mas não tanto, taxa mais uma vez Lula de ladrão e chefe de quadrilha. Como na Lava Jato, a suspeição é “prova”. No caso de Lula, se há suspeição deve haver crime, seguramente. E quem suspeita? Ela mesma, representando a “opinião pública” made in Globo e suas congêneres, como uma espécie de Moro de saias e com uma tribuna permanente na internet, na rádio, na televisão. 

Dizer que Lula e o PT foram perseguidos, afirma peremptoriamente, é teoria da conspiração. Não houve golpe afinal, digam o que disserem. Lula deve esclarecimentos à justiça. Mas, afora isso, Lula é um democrata e Bolsonaro um autoritário. Não há equivalência entre os dois, não há escolha possível: Bolsonaro já provou sua total incompetência e seu nefasto autoritarismo. Vamos de Lula na próxima eleição, pois se não há tu, vai tu mesmo: a direita não tem e não terá candidato para vencer Bolsonaro. 

Aqui uma nota de lucidez da autora: a direita não tem, nesta altura e no contexto da crise como improvisar o anti-Bolsonaro capaz de vencer o Capitão do Caos. Delega assim a tarefa a Lula. Delegação provisória, claro está, algo desesperada talvez, recurso último para estancar a sangria, remendar o golpe e reter os dedos do estrago neoliberal entregando os anéis das eleições controladas, com um tapinha nas costas e nada de essencial a lamentar, explicar ou desfazer. Apenas um grande mal-entendido que a cordialidade do homem brasileiro saberá anular.

A direita brasileira é quem parece sonhar agora o sonho da conciliação provisória e limitada contra o inimigo “comum”. Na guerra como no amor tudo é permitido, e estamos todos em guerra contra Bolsonaro e a extrema direita. Aonde ficam as fronteiras entre a direita de sempre e os arrivistas da direita “incivilizada” é, ou deveria ser, dentro do regime golpista em que vivemos, algo para ser melhor esclarecido pela editorialista.  Mas, convenhamos, é tarefa não muito fácil, mesmo para fabuladores profissionais.

No passado recente, uma certa política progressista da conciliação, entre vários resultados positivos ou negativos segundo diversas perspectivas, resultou também no fortalecimento da perene vocação e anseio golpista da lumpemburguesia brasileira. 

Entre conciliar e capitular, as fronteiras podem ser imprecisas em determinados contextos. Resta-nos a experiência como guia. E, no entanto, o que se aprende com a história, Hegel observou, é que os homens nada aprendem com os erros e as desventuras do passado e criam e recriam ilusões e dificuldades semelhantes quase sempre.

Outro filósofo alemão observou que os homens fazem a história não em contextos escolhidos, mas em circunstâncias herdadas que limitam suas iniciativas. E, no entanto, este mesmo pensador insistiu sempre na mudança das circunstâncias como tarefa essencial da consciência e da ação humana na história.

Já foi dito, igualmente, que Bolsonaro é o “bode na sala” da vez. Expulsando o bode da casa, o ar da habitação melhora imediatamente. É um alívio para todos. Na anedota, antes da recomendada “terapia do bode”, a família vivia às turras. Depois dele, o status quo ante é restaurado, mas reina a paz. Provisória, claro está. 





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