Um novo “Tribunal Russell” para o Brasil no século XXI

Marcelo Guimarães Lima


 
Bertrand Russell


 

Roberto Amaral na Carta Capital, num texto lúcido e bem argumentado, propõe a criação de um Tribunal Popular para julgar os crimes de Bolsonaro e seus aliados. Como observa o autor, o momento é de uma grave crise nacional e, digamos, em dimensão e aspectos centrais, uma crise inédita no seu alcance que tende a se agravar, a se estender no tempo e se aprofundar nos infortúnios, nas gravíssimas condições de vida e sobrevivência a que submete o povo brasileiro e que ameaça a nação como um todo.

A situação presente, a crise histórica de hoje tem seus antecedentes, segundo o autor, na transição incompleta, e digamos irresponsável da parte de seus inúmeros atores, da ditadura militar para a democracia tutelada pela classe dirigente brasileira e seu braço armado institucional: os militares, cujo papel na vida nacional na segunda metade do século XX se caracterizou pela submissão ideológica ao poder dos EUA, a usurpação política, o triste e criminoso papel de tutores e policiais do povo brasileiro.

A democracia incompleta viveu sua melhor fase nos governos do PT e aí chegou ao limite imposto pela chamada “elite” brasileira: o limitado processo de inclusão social dos governos do PT teria (e teve de forma incipiente) como uma das suas consequências objetivas, malgrado todas as suas restrições, uma mudança nas relações de classe no país. Algo intolerável para a classe dominante brasileira, a nossa lumpemburguesia (ou burguesia-lixo, uma “subclasse” marginal e desnaturada na dimensão histórica mundial), formada na submissão neocolonial, herdeira do escravismo, uma burguesia vacilante e incivilizada, violenta na sua inconfessável mas constitutiva insegurança e no seu papel ultraconservador de manutenção a ferro e fogo de todos os hibridismos históricos da formação periférica nacional.

Bolsonaro e seus neofascistas no poder são o reflexo local da crise global do sistema capitalista na sua fase (historicamente derradeira?) neoliberal, crise de múltiplas dimensões: econômica, institucional, ecológica, crise estrutural que coloca hoje para a humanidade como um todo um desafio vital incontornável e inadiável.

Bolsonaro é, na sua especificidade local, produto da ditadura militar especialmente, como observa Roberto Amaral, da transição tutelada, caracterizada à época por Florestan Fernandes como processo de “conciliação das elites”, que impediu ao país um necessário confronto com a sua história, impediu a punição dos acaparadores da riqueza pública aliados a interesses estrangeiros, a punição dos torturadores e seus mandantes, e permitiu as sobrevidas da ditadura, finalmente atualizadas no golpe de estado de 2016.

Neste momento, uma nova conciliação das elites é esboçada nos apelos e ensaios de “frente ampla” pela direita “tradicional” e seus meios de pressão e comunicação para salvaguardar a continuidade do golpe de estado de 2016. Bolsonaro por um lado encarna o processo golpista e sua cruel dimensão neoliberal. Por outro lado, com sua criminosa incompetência administrativa, seu ativismo exacerbado de extrema direita e suas chantagens ditatoriais, Bolsonaro ameaça desestruturar e no limite paralisar o processo golpista. Torna-se assim candidato ao descarte, que poderá ser realizado com maior ou menor cerimônia.

O projeto da barbárie neoliberal no século XXI avança. Contra a regressão histórica, a resistência também se atualiza e retoma suas energias históricas. O Tribunal Russell na década de 1960 foi corajosa iniciativa e de grande repercussão capitaneada por Bertrand Russel e secundada por Jean Paul Sartre, dois dos maiores e mais influentes pensadores do século XX que não se furtaram às suas responsabilidades de intelectuais, de portadores dos valores do conhecimento e da cultura diante da barbárie da guerra de domínio e extermínio imperialista contra o povo vietnamita.

Bertrand Russell, filho da aristocracia britânica, encarnou na sua vida os ideais liberais-libertários da tradição dissidente da cultura e da história inglesa, na esteira de um William Godwin, de William Blake, de Shelley, entre tantos outros poetas, artistas e filósofos dissidentes radicais na sociedade inglesa. Preso por suas ideias e sua militância pacifista no período da Primeira Guerra Mundial, foi perseguido quando de suas conferências nos EUA na década de 1940 e impedido de lecionar por seus escritos contra a religião e crítica ao cristianismo. Seu livro “Crimes de Guerra no Vietnam” (1967, Monthly Review Press) é uma corajosa e contundente denúncia, direta, sem titubeios, sem meias palavras, da barbárie norte-americana contra o povo vietnamita. 

 

“O racismo do Ocidente, especialmente o dos Estados Unidos, criou uma atmosfera na qual é extremamente difícil fazer ver de modo claro a responsabilidade da América pelos problemas que são considerados “internos” aos países subdesenvolvidos. A guerra do Vietnam é vista como o trágico e inevitável produto do atraso, da pobreza e da selvageria supostamente nativas no Sudeste da Ásia. (…) O fato essencial que desejo afirmar e deixar claro aqui é que a guerra do Vietnam é de responsabilidade dos Estados Unidos. Esta verdade elementar é de importância central para a compreensão desta guerra cruel. Para entender a guerra temos que entender a América, sem ignorar, claro está, a história do povo vietnamita.” Bertrand Russell, War Crimes in Vietnam, pp10-11.

“Os Estados Unidos controlam hoje mais de 60 por cento das riquezas naturais do mundo, embora represente apenas 6 por cento da população mundial. Os minerais e produtos agrícolas de vastas áreas do planeta são propriedades de um punhado de pessoas. (…) A guerra do Vietnam é uma guerra como aquela que os alemães conduziram na Europa do Leste. É uma guerra feita para proteger o domínio da riqueza da região pelos capitalistas americanos” Bertrand Russell, War Crimes in Vietnam, pp116-117.

“O povo do Vietnam representa hoje o papel de soldados universais da luta pela justiça. A sua é uma luta épica, e demonstra o heroísmo de que é capaz o ser humano quando guiado por um nobre ideal. Nossa saudação ao povo do Vietnam.” Bertrand Russell, War Crimes in Vietnam, p178. (minha tradução)

O Tribunal Russell, após a morte de Betrand Russell, foi reativado em 1974 por iniciativa do político socialista italiano Lelio Basso para investigar e denunciar a sangrenta repressão política no Brasil e na América Latina pelas várias ditaduras militares apoiadas ideológica e materialmente pelos EUA.

No momento em que Bolsonaro e seus aliados militares chantageiam o país com ameaças de retorno da ditadura militar, é hora de retomarmos a memória e a iniciativa da tradição de resistência, hora de tomar a iniciativa e ofensiva e denunciar e julgar publicamente os que hoje tem por objetivo condenar o país a reviver um passado de violência e de desonra da nação.







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