O pensador que nunca ensarilhou as armas da crítica: Florestan Fernandes
Caio Navarro de
Toledo
Florestan Fernandes
Nota de Apresentação:
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Publicado
originalmente, em 1996, sob outro título, o artigo abaixo examina a figura humana, o
significado da fecunda obra científica e o entranhado compromisso de Florestan Fernandes na defesa de radicais transformações da sociedade brasileira. Durante
toda a sua vida, Florestan buscou sempre responder à crucial questão que se
impõe aos intelectuais críticos na ordem capitalista: como compatibilizar a
atividade teórico-científica com o radicalismo político e ideológico? No dia 22 de julho próximo, Florestan Fernandes completaria 100 anos. Este texto é, assim, uma singela homenagem a um dos mais qualificados e fecundos pensadores sociais do Brasil.
Foram muitas as
lutas e os combates enfrentados por Florestan Fernandes durante sua fecunda
vida (1920-1995). Nos anos recentes, embora fisicamente combalido por uma
doença – cirrose hepática provocada por uma transfusão de sangue contaminado –
que lhe impunha cuidados médicos constantes, Florestan jamais ensarilhou suas
armas. Sua virtù consistia em
desafiar abertamente a má sorte, opondo-lhe a lucidez de seu espírito combativo
e a força de sua integridade moral. A enfermidade não fazia calar a apaixonada
defesa das ideias que constituiriam a própria razão de sua existência. Relata o
noticiário de um jornal que, poucos dias antes de sua morte, ao entrar na sala
de cirurgia, com voz débil, mas, serena, testemunhou: "O que me mantém vivo é a chama do socialismo
que está dentro de mim".
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Para os que hoje,
nos meios intelectuais, optaram pelo cinismo da razão e pelo pessimismo da
vontade – na exata inversão do que ensinava o revolucionário no cárcere
fascista –, tal declaração não deixaria de soar patética ou quixotesca. No
entanto, longe da retórica e da profissão de fé, Florestan - através da
afirmação do socialismo - expressava com inteira autenticidade a segunda natureza que nele se plasmou
harmonicamente, produto de uma aguda sensibilidade humana e uma radical
intolerância diante de toda e qualquer forma de opressão e exploração sociais.
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A aprendizagem
sociológica e política de Florestan, como ele reconheceu, iniciou-se com a
criança de seis anos, quando começou a trabalhar a fim de ajudar sua mãe,
viúva, lavadeira e empregada doméstica, a pagar o aluguel dos porões ou dos
quartos de cortiços dos bairros da periferia da cidade de São Paulo. Foram
várias as venturas e desventuras que pontilharam uma infância e adolescência
marcadas pela necessidade de buscar trabalho, por vezes "humilhante e
degradante". Ele e a mãe - nas suas palavras, a "soma de duas fraquezas não compõe uma força" - eram "varridos pela tempestade da vida"
e o que os salvou foi o orgulho selvagem dos desenraizados. Perdido no mundo
hostil, o jovem voltava-se para dentro de si para descobrir nas "técnicas
do corpo" e nos "ardis dos fracos" os meios de autodefesa para a
sobrevivência.
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Mas, da
experiência de vida compartilhada com os demais marginalizados e ofendidos da
cidade, o adolescente retirará ensinamentos decisivos que o acompanharão
durante toda a vida: "O caráter
humano chegou-me por essas frestas, pelas quais descobri que o 'grande homem'
não é o que se impõe aos outros de cima para baixo ou através da história; é o
homem que estende a mão aos semelhantes e engole a própria amargura para
compartilhar a sua condição humana com os outros, dando-se a si próprio, como
fariam os meus Tupinambá".
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Superando
obstáculos que se colocavam para o jovem pobre e autodidata, "sem berço e
sem nome", na São Paulo dos anos 40, o lumpem-proletário chega à
Universidade de São Paulo. O invulgar talento para a pesquisa empírica e a
voracidade para a leitura da bibliografia sociológica e antropológica
disponível (na sua maioria, em língua estrangeira) transformam o
"estudante promissor", em poucos anos, no brilhante assistente da
cadeira de Sociologia II. Uma ruptura inimaginável na vida de um homem de
origens rústicas.
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Integrando-se,
assim, desde muito cedo à elite pensante da USP, sofisticando-se
intelectualmente através da educação letrada e da aquisição de novos padrões de
vida; Florestan, no entanto, jamais negará a sua "natureza selvagem, agreste, de filho de dona Maria" – a
herança mais preciosa que carregou até o fim de sua vida, conforme assinalou em
alguns depoimentos. Poucos intelectuais no Brasil podem ser qualificados como
pensadores originais e criativos. Florestan é um deles. Sem referência à sua
obra-documento, como já foi observado, será difícil entender a sociedade
brasileira contemporânea pois seus trabalhos analisam – com argúcia e rigor –
os dilemas, as contradições e as possibilidades do Brasil neste século. Mais de
50 livros publicados - alguns ainda no prelo - continuarão a orientar novas
pesquisas e ensaios acadêmicos no campo das ciências sociais e a reflexão
crítica acerca da formação social brasileira, nas suas múltiplas dimensões -
economia, política, cultura, relações raciais etc.
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Como intelectual
militante (marxista e leninista, como
gostava de sublinhar), Florestan buscou sempre responder à inevitável questão:
como compatibilizar a atividade teórico-científica com o radicalismo político e
ideológico? Estava convencido de que era impossível – e também indesejável e
improdutivo – separar a investigação sociológica do movimento socialista,
isolando a sociologia do socialismo. A realidade, dizia, impunha que ambos
avançassem interligados, influenciando-se de maneira permanente, profunda e
fecunda. Recusando-se a aceitar as armadilhas da pretensa neutralidade
axiológica, era categórico em afirmar: "No fundo, temos de arcar com a responsabilidade de saber em relação a
que somos funcionais (ou instrumentais): ao pensamento conservador, que se
converteu inexoravelmente num pensamento contra-revolucionário [...] ou ao
pensamento socialista, o único que encarna as potencialidades da transformação
revolucionária da ordem social imperante no Brasil".
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Neste particular,
sempre manifestou uma incontida insatisfação em face da sua própria trajetória
intelectual, sendo implacável na autocrítica: ''Todas as tentativas que fiz para combinar as duas coisas falharam".
Mas a explicação tinha razões estruturais que independiam da generosa vontade
do pensador crítico: não existia um movimento socialista forte e enraizado na
sociedade brasileira que servisse de substrato e de apoio para os intelectuais
de formação socialista.
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Embora recusasse a
observação de que teria privilegiado a ciência "contra o socialismo",
reconhecia – avaliando sua produção acadêmica nos anos 40-50 – que se "tivesse seguido um caminho, no qual pudesse
definir a minha perspectiva como cientista social a partir de um movimento
socialista forte, nunca teria trabalhado com os temas com os quais eu trabalhei".
Há que se observar, no entanto, que os clássicos trabalhos sobre os tupinambá,
o negro e o folclore na cidade de São Paulo (que tinham como objeto os
excluídos, os marginalizados, os desenraizados) foram elaborados sob a ótica de
uma teoria social crítica.
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Uma avaliação
criteriosa e sistemática do conjunto de sua obra ainda está por ser feita. Além
da questão acima mencionada, temas polêmicos, suscitados por seus trabalhos,
deverão ser debatidos e esclarecidos; por exemplo, no campo do materialismo
histórico, sua tentativa de compatibilizar particularmente nas primeiras obras
– o método funcionalista e o método dialético, a natureza da sua interpretação
marxista, sua visão (e crítica) do chamado "socialismo real" e a
explicação de sua crise e colapso, a consistência teórica da sua defesa do
socialismo revolucionário no mundo contemporâneo etc.
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Florestan foi, no
Brasil e no exterior, um veemente inimigo da ditadura militar. No seu caso, o
regime militar não se equivocou ao aposentá-lo compulsoriamente da USP, na
tentativa de intimidar e fazer calar a sua voz. Através de livros, artigos e
entrevistas em jornais e revistas, cursos e uma incansável atividade como
conferencista, sua palavra nunca foi silenciada. Em meados dos anos 80, o
tribuno e escritor militante – depois de ter recusado convites anteriores –
ingressou no Partido dos Trabalhadores. Recolhendo recursos da venda de seus
livros e com o apoio entusiasmado da militância comprometida com suas ideias,
Florestan se elegeu deputado federal, em 1986, com mais de 50 mil votos. Em
1990 seria reeleito, deixando de se candidatar posteriormente.
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O intelectual
socialista, no entanto, manteve sempre uma postura crítica face à
"política profissional", não se deixando seduzir pelos encantos,
privilégios e facilidades inerentes à representação parlamentar na ordem
democrática burguesa. Ativo deputado federal, com uma atuação destacada na área
da educação, não deixou de assinalar certo isolamento dentro do partido.
Falando sobre sua presença no PT, numa entrevista em 1989, afirmou: "Eu sou muito bem-vindo no PT; gostam muito
de mim, mas lá fiquei relativamente isolado. Sou como um sabiá que canta
sozinho".
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Florestan, como se
sabe, não se filiou a qualquer tendência do PT; na condição de
"independente", sempre manteve uma relação amistosa e cooperativa com
as facções internas, recusando-se a discriminar quem quer que fosse. Como um
possível antídoto aos efeitos negativos da crescente institucionalização do PT,
julgava ser positiva a existência das tendências – particularmente daquelas
comprometidas com o socialismo revolucionário. Leal ao PT – como também
colaborador generoso dos movimentos sociais e partidos de esquerda brasileiros
(ex-PCB, PC do B, PSB e outros pequenos grupos) bem como de partidos da
esquerda latino-americana –, Florestan, contudo, nunca abdicou de suas
convicções revolucionárias. Em virtude disso, questionava o chamado
"socialismo petista" (seja na fórmula do socialismo "democrático",
seja na versão do socialismo "moderno") bem como a recusa teórica –
quando não hostilidade – de setores do partido diante do marxismo.
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Em sua atuação
parlamentar, nunca deixou de afirmar sua condição de intelectual. Mas de
intelectual radical – sem nenhuma semelhança com os pseudamente intelectuais
"extremistas", os chamados "socialistas de cátedra",
ironizados por Marx, "que se
deitavam em seus sofás e maldiziam a revolução, que era impossível..."
Seus últimos escritos e depoimentos manifestavam um profundo desagrado pela
dinâmica interna e posições políticas e ideológicas recentemente assumidas pelo
PT: a excessiva burocratização interna em detrimento da participação da
militância, a fetichização e culto da democracia, o apego crescente ao eleitoralismo,
a redução da política ao plano institucional, o isolamento do partido em
relação aos movimentos sociais mais combativos e seu descolamento face às
amplas camadas marginalizadas e despossuídas - em poucas palavras, a
perspectiva da social-democratização do PT era uma alternativa que ele
pessoalmente não admitiria convalidar.
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No I Congresso,
indagou sem equivocidades: "O PT
manterá a natureza de uma necessidade histórica dos trabalhadores e dos
movimentos sociais radicais, se preferir a 'ocupação do poder' à ótica
revolucionária marxista?" Na cerimônia de seu funeral, a indagação de
Florestan ressurgia no simbolismo ali presente: as flores dos sem-terra –
alguns deles tinham sido massacrados, em Rondônia, na véspera de sua morte – e
as bandeiras vermelhas do PT eram empunhadas por companheiros entoando a velha
canção que identifica os comunistas em todo o mundo.
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Para Florestan
Fernandes, os versos do internacionalismo proletário nunca foram uma canção
dissonante. Ou, como diria, "não
eram letras mortas ou um poema sem encantos".
Caio Navarro de Toledo - é professor
aposentado da Unicamp.
Membro do Comitê Editorial do blog marxismo21
https://marxismo21.org
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