Crime e Política

 




Sobre Crime e Política.

Marcelo Guimarães Lima

Um breve artigo do jornalista Leandro Demori publicado na Newsletter do TheIntercept Brasil e do qual reproduzimos alguns trechos abaixo, expõe de forma didática e sucinta a aliança entre o crime organizado e políticos no Rio de Janeiro e, entre eles, em posição de relevo, a família Bolsonaro.

A conexão entre o crime organizado, o aparelho de estado e a cúpula estatal, é uma das características dos tempos recentes e não tão recentes: o caso da Máfia italiana na segunda metade do século XX é dos mais espetaculares, mais notórios e conhecidos. Igualmente o envolvimento de governos dos EUA, através da CIA, com organizações criminosas, mercenários, torturadores, traficantes de drogas, etc, é conhecido e documentado por fontes independentes. Em tempos não tão distantes, podemos mencionar o governo de Ronald Reagan e a sua guerra suja na América Central como um exemplo dos mais notórios, mas não o único, nem o primeiro ou último.

O trabalho sujo e ilegal, considerado necessário para a preservação do poder pelos grupos dominantes, quando ultrapassa as possibilidades das ilegalidades habituais do poder normalizadas no cotidiano dos regimes democráticos tradicionais, este trabalho imperioso e urgente é “terceirizado” para organizações criminosas com o necessário know-how para atos de violência, intimidação, chantagem, roubo, torturas, assassinatos e que tais. Um casamento de conveniência entre o estado, grupos de negócios e grupos criminosos supõe trocas e vantagens mútuas, mas é sempre de difícil estabilização.

No caso da Itália na década de 1970 o crime organizado, em parte já entranhado na estrutura do estado, foi cooptado para servir à repressão política, para a infiltração em grupos de ativistas anticapitalistas, quando não para a criação mesma de falsas “organizações de esquerda radical”, organizações fantasmas constituídas por militantes fascistas, policiais, militares, agentes secretos, etc, agentes provocadores promovendo atos reais ou encenados de violência “revolucionária” a fim de justificar a violência do estado como “defesa da ordem”, justificar a suspensão e transformação da ordem legal e das garantias individuais, o ataque às organizações populares, o cerceamento das liberdades públicas e justificar o arbítrio da força e do poder estatal.

O que se passa no Brasil atual, com a ascensão de Bolsonaro ao papel de presidente, é algo semelhante e distinto ao mesmo tempo, no sentido em que uma figura marginal da vida política, como sempre foi Jair Bolsonaro na sua longa carreira de político do baixo clero parlamentar, conquistou o cargo de chefe da nação dentro do processo golpista do impedimento de Dilma Rousseff e a prisão do ex-presidente Lula. Com Bolsonaro e suas ligações com a máfia militarizada carioca, segundo o exposto por Leandro Demori, podemos caracterizar um processo específico no qual não é o estado que instrumentaliza a criminalidade organizada, mas que esta é que ascende ao centro do poder.

A histeria antipetista (contra a esquerda em geral) promovida ao longo de muitos anos pela imprensa monopolizada, representando as classes dominantes na sociedade brasileira, histeria intensificada no processo golpista, errou na dose, como muitos observaram, e atingiu a estrutura política tradicional como um todo.

O processo do golpe uniu empresários, interesses externos e políticos do baixo clero (quem se recorda de Eduardo Cunha e sua troupe?) num vale tudo não apenas contra o governo de Dilma, mas contra a ordem legal surgida com a constituição de 1988 e o modesto projeto de extensão da cidadania que esta refletiu. O processo golpista paralisou não apenas o executivo, mas mostrou a máquina do estado e seus aparelhos jurídico e repressivo como suscetíveis de manipulações e chantagens, quando não como ativistas da antirrepública, num processo de subversão da ordem legal, processo desmoralizador, de deslegitimação das instituições da frágil democracia brasileira, processo de fato autofágico cujo resultado é o atual desgoverno Bolsonaro.

O apoio dos militares a Bolsonaro e ao processo golpista tem suas raízes no processo da redemocratização onde a pressão e tutela militar impediram o necessário, imprescindível de fato para a democracia, ajuste de contas com golpistas e torturadores. O “revanchismo”, acusação utilizada na redemocratização como álibi ideológico para impedir a responsabilização legal de golpistas e torturadores nos marcos estabelecidos das instituições da democracia, revela-se afinal como algo próprio do aparato militar, cultivado durante as décadas da chamada normalidade democrática e que floresce no processo golpista de 2016 e no apoio e manobras ativas para a eleição de Bolsonaro.

Ideologia visceral da cúpula militar, o “anticomunismo” (genérico e interessado, que é algo mais do que aquilo que sua autorrepresentação quer sugerir) parece ter obnubilado a visão estratégica racional ou racionalizada dos responsáveis pela instituição militar, abrindo as portas da instituição para representantes de grupos organizados que por natureza, isto é, usando a violência como meio, buscam o monopólio do poder de fato.

A ditadura militar organizou elementos marginais dentro do aparato repressivo que agia além dos próprios marcos legais da própria ditadura. É provável que esta experiência esteja na base do cálculo do apoio irrestrito a Bolsonaro. E, no entanto, a conjuntura não é a mesma, nem mesmo na análise mais superficial. A ditadura militar terminou em crise de orientação e eficácia nas últimas décadas do século XX. E suas sobrevivências dentro da instituição militar tiveram que se adaptar de algum modo ao novo tempo democrático, com todas as limitações e instabilidades da democracia brasileira. A extrema direita militar que comandou e vicejou no período da ditadura foi, por assim dizer, “terceirizada” com Bolsonaro. Dizer, no processo atual de ativismo político dos militares apoiadores do golpe quem é o instrumento e quem o manipulador pode parecer um calculo simples à primeira vista, mas vivemos momentos de mudanças profundas que se traduzem em efeitos únicos, súbitos e inesperados.

A crise brasileira atual é momento da crise capitalista mundial. Esta é de longo alcance e profundidade e desestabiliza não apenas a democracia liberal como forma, mas as sociedades capitalistas nas suas estruturas e seus processos. A adesão ao “Mito” nas casernas traz para o interior da instituição militar e dos aparatos repressivos do estado um conflito de lealdades e papéis que aqui também reúne todos os elementos para se desenvolver em tempo breve como processo autofágico. No atual contexto brasileiro, tal projeção está longe de ser mera ficção distópica.

Bolsonaro trouxe para aparelhar os altos escalões administrativo do estado seus correligionários, asseclas, compadres, companheiros, amigos, parceiros, aliados, comensais, etc do baixo clero e de áreas associadas da extrema direita marginal, das organizações religiosas mercantilizadas, de empresários trambiqueiros, de militares da reserva, na sua grande maioria uma chusma ou súcia de limitada ou nenhuma capacidade técnica e administrativa que tem em comum o apetite do poder e suas recompensas materiais, apetite justificado por paixões messiânico-ideológicas, fantasias regressivas e truculência de fato como método.

O projeto de antinação que está sendo implementado no Brasil hoje, esgarça o já frágil tecido social do país, formado nas experiências históricas da colônia e da neocolônia, num período de profunda crise mundial na qual se entrelaçam a crise das periferias e do centro do capitalismo mundializado em sua tripla expressão de crise econômica, crise política e crise ecológica.

O bom senso aconselharia doses reforçadas de prudência em períodos como este. Mas crises são processos que tendem à autonomia, e quando a crise se agrava gente sem senso algum tende a responder com mais e mais do mesmo, trocando, por assim dizer, a crise atual pela próxima crise, reproduzindo e reforçando crises por processos de fuga desesperada para a frente.

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A milícia federal está nua

Leandro Demori
Editor Executivo
The Intercept Brasil


Quinta-feira, 25 de junho de 2020

Nos últimos dois anos o Intercept tem se dedicado a cobrir as entranhas das milícias que atuam no Rio de Janeiro de maneira sistemática e com muito cuidado. Já contamos como milicianos assumiram o controle da cidade a partir de dados exclusivos do Disque Denúncia, fomos os primeiros a apontar a relação de milicianos com os assassinatos de Marielle Franco e de Anderson Gomes e, em abril, publicamos uma reportagem que decifra o enigma da rachadinha do gabinete de Flávio Bolsonaro. A grana desviada da Alerj servia para financiar obras ilegais de construtoras de uma milícia, segundo investigações do MPRJ que agora chegaram a Fabrício Queiroz, o tesoureiro da família presidencial.

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Depois de tanto tempo cobrindo esse tema, notei que nem todos parecem ter um entendimento sobre o que significa "milícia". O que percebi é que essa palavra não comunica tão bem com quem não é do Rio de Janeiro. Mas é uma palavra muito importante neste momento, porque é chave para entender com quem a família Bolsonaro está envolvida.

Sendo direto: milícia é crime organizado armado, bandidagem, assassinatos. Isso é milícia. É máfia: um grupo de pessoas que domina um território e cobra "proteção" da população local. Quem não pagar, morre.

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A variedade de negócios que milicianos operam é enorme. Eles têm construtoras, bocas de fumo, empresas de transporte, operadoras de TV a cabo clandestinas. Onde der pra ganhar e lavar dinheiro, eles estão envolvidos. São cada dia mais poderosos no Rio e a tendência é que passem a atuar no resto do país — sempre com a proteção ou a participação de elementos corruptos do Estado.

E por que é tão importante que todo mundo nesse país compreenda direitinho o que é uma milícia, quem faz parte dela e como ela funciona? Ora, porque a milícia está hoje no centro do poder.

Como já foi amplamente demonstrado na imprensa, os quatro gabinetes da família Bolsonaro sempre operaram como uma grande empresa de mamata profissional. Queiroz entrou na roda levado por Jair, sua esposa trabalhou no gabinete de Flávio, sua filha, no gabinete do próprio Jair na Câmara em Brasília. A repórter Juliana Dal Piva, do jornal O Globo, mostrou que os quatro Bolsonaro empregaram por quase três décadas 102 pessoas com laços familiares. É uma engrenagem de rachadinha para irrigar outros negócios.

O presidente e seus filhos, portanto, não são apenas vizinhos de milicianos. Os laços são mais profundos também do que as condecorações que ofereceram para milicianos na Alerj (e inclusive durante cumprimento de pena na cadeia, como Adriano da Nóbrega). Os Bolsonaro têm negócios com a milícia e por tudo o que a investigação sobre Queiroz mostrou na semana passada, ficou bem explícito que ele era muito mais do que o sujeito que depositava a rachadinha. Queiroz, pelo que se sabe agora, é similar a um tesoureiro da máfia: não é laranja dos seus chefes, mas sim operador. Um PC Farias.

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