A imaginação do desastre: de pandemia e outras catástrofes desnaturais.

Marcelo Guimarães Lima




Marcelo Guimarães Lima - Event Horizon, 2011, digital painting, from
The Imagination of Disaster series.


Em 2011 realizei, junto com minha colega a pintora e desenhista Julia Townsend, a exposição The Imagination of Disaster (A Imaginação do Desastre) na galeria Total Arts em Dubai (ver o catálogo aqui). A exposição apresentava uma “reflexão em imagens” sobre o tsunami que se abateu sobre a costa do Japão em março de 2011 e destruiu a localidade de Fukushima atingindo as instalações nucleares locais e gerando um acidente nuclear comparável, em gravidade e potencial de destruição, ao desastre de Chernobyl em 1986 na então União Soviética.

O título da exposição referenciava o conhecido texto da ensaísta e romancista norte-americana Susan Sontag (1). Em seu ensaio, Sontag examinava os desastres, as fantasias de aniquilação da espécie humana dos filmes de ficção científica no período da Guerra Fria. Nestes filmes, segundo a escritora, a fantasia do medo articulava simbolicamente o medo de fato da guerra nuclear.

Na chamada ficção científica era possível imaginar o inimaginável, a destruição humana não apenas individual mas coletiva, possibilitada pela primeira vez na história pelo arsenal existente de armas de destruição em massa, conceber a destruição do planeta, isto é, do meio ambiente natural e sócio-histórico e com ele a destruição da espécie humana como uma forma da errância finalizada ou a conclusão, definitiva e algo absurda, da aventura milenar da espécie.

Esta representação imaginária do “irrepresentável” ou inconcebível servia, a seu modo, de “catarse” generalizada. Representar o que se teme na realidade enquanto ficção servia para apaziguar os espíritos, afastar, sublimar o medo real, com sua ameaça de desestruturação e paralisia dos sujeitos, por meio de narrativas imaginárias que, desdobrando a angústia real, contribuíam adicionalmente, como um anestésico da alma, para dificultar o confronto racional com a ameaça da guerra atômica e a apreensão efetiva, isto é, ativa e não mais passiva, da situação presente, a compreensão da sua gênese, natureza e possíveis alternativas. A ficção do desastre somava as funções de terapia e ideologia.

A ideologia do medo é o que podemos talvez chamar a temática sobre a qual Susan Sontag desenvolveu parte importante de sua obra ensaística em livros como A Doença como Metáfora (1978), AIDS como Metáfora (1988), Diante do sofrimento dos outros (2003). Tanto quanto a saúde, observa Sontag, a doença é parte da vida, é a outra face da vida, obscura, noturna face, mas não menos substancial. É um país, escreve ela, por onde todos devemos passar, por mais ou menos tempo, e do qual somos também cidadãos. Metáfora espacial, temporal e cívica. Sontag examina, com argumentos e imagens, isto é, metáforas próprias, outras metáforas correntes que representam a doença por meio de imagens “sentimentais” e (auto) “punitivas” que dizem respeito não tanto à experiência efetiva de cada um, mas às representações que se dá uma determinada sociedade: este pensamento que pensa os sujeitos e assim tende a sujeitá-los, a determinar suas ações e reações, determinar o (des) conhecimento de si e do mundo.

A metáfora é, claro está, uma das formas essenciais do pensamento. E, no entanto, tanto quanto a própria linguagem, tal qual um ser vivo, necessita de cuidados e necessita principalmente de renovação constante. A função da palavra, da literatura aqui na forma do ensaio, da criação artística em geral, é libertar o sujeito dos significados automáticos, dos clichês, das imagens impositivas, vulgarizadas, exauridas, debilitadas e debilitantes face à realidade humana em constante mudança. Função pedagógica como uma espécie de contra-ideologia, na tradição filosófico-terapêutica dos diálogos socráticos de Platão (que, por sua vez, podem ser considerados como ensaios dramáticos).

Contra os automatismos da percepção e das linguagens, a arte tem como meio e finalidade, como observaram os Formalistas russos no princípio do século XX, renovar a experiência e os significados. . Como observou Susan Sontag em seu ensaio, o tema dos desastres é dos mais antigos nas artes (2). Os trabalhos da exposição The Imagination of Disaster apresentavam um comentário visual sobre as imagens e os significados da tragédia de Fukushima, suas implicações humanas, sistêmicas, ecológicas, etc.



Marcelo Guimarães Lima - Memento, 2011, digital painting, from
The Imagination of Disaster series.


S. Zizek em suas recentemente publicadas causeries sobre a atual pandemia (3) nos alerta contra a simbolização, igualmente sentimental e autopunitiva, daquilo que é para nós desastroso, mas em si, isto é, estritamente considerado, não passa de mais um acidente da natureza que, como tal, não tem nada a nos dizer de mais significativo: a natureza, o universo em geral não é um interlocutor engajado no mútuo reconhecimento das subjetividades como é próprio do diálogo. Apenas o narcisismo milenar da espécie nos faz esperar respostas pessoais em tais ocasiões. Como os deuses de Epicuro, usufruindo da imortalidade e absortos em seus afazeres divinos, eram indiferentes à sorte humana (Epicuro bania assim da vida humana o temor ao divino), do mesmo modo a natureza aqui nada nos diz: apenas, na crise vital que nos aflige, nos dá a medida da nossa própria insignificância na ordem cósmica.

E, no entanto, a pandemia, um desastre anunciado, muito nos diz sobre o mundo globalizado e o tempo em que vivemos. A virtude de determinadas situações extremas é obviamente clarificar, separar o essencial do acessório, revelar de modo incontornável, insofismável, a realidade de uma circunstância e nela as escolhas possíveis / necessárias.

A primeira evidência é que até este momento vivíamos um contexto em que o insofismável não tinha lugar, onde imperava a manipulação sem limites do sentido das nossas ações e crenças. A imprensa, o jornalismo profissional e as mídias sociais, longe de se oporem, se complementavam na expansão do império da opinião sobre a informação e o conhecimento. A pandemia vem desnudar esta situação em que o conflito entre as “convicções” profundas e “espontâneas”, a opinião subjetiva de um lado e do outro o conhecimento tem implicações vitais imediatas. As convicções fabricadas não tem valor para a sobrevivência individual e coletiva. Ao contrário: a ignorância e o preconceito são imediatamente perigos mortais.

A tal “superestrutura” ideológica corresponde uma estrutura de base: o capitalismo neoliberal globalizado governando nossas vidas e nossas mortes. As insuficiências, o desperdício, a precariedade, os riscos vitais da organização atual dos processos de sobrevivência material da sociedade estão postos de modo inequívoco, como uma situação de fato, significativa nas suas implicações gerais, com a qual a consciência deve se confrontar e à qual nosso comportamento deve responder.

Como observou Marilena Chauí (4), na crise do coronavírus subitamente o evangelho neoliberal é “dessacralizado”, o discurso oficial e oficioso, no centro mundial do sistema e em parte na periferia, passa a falar de intervenção estatal, controle da produção, renda universal, assistência pública de saúde, e anátemas similares. A reversão do discurso indica o esgotamento, relativo, mas não menos efetivo, patente, de uma prática determinada e a necessidade de mudanças na estrutura global de poder na economia e nas relações internacionais. Como?

Duas respostas possíveis são examinadas por especialistas, críticos e pensadores: a primeira aponta para uma nova solidariedade nascida da experiência de grupos de apoio mútuo, profissionais da saúde, voluntários, organizações populares desenhando novas formas e instituições de vida coletiva que a crise presente mostrou necessárias e não apenas mais ou menos desejáveis.

 A segunda, para novos mecanismos de controle centralizados de forma corporativa e estatal. De um lado os germes de um novo “comunismo” para além da (des) ordem neoliberal, segundo Zizek; do outro o triunfo da bio-política, da vida nua e crua, da sobrevida como ideal, do controle totalitário dos corpos e corações. Aqui o “anti-estatismo” neoliberal, hipocritamente seletivo, mostra seu verdadeiro rosto de acobertamento da prática totalitária do poder produzindo o reforço de fato dos aparelhos ideológicos do estado (religião, ideologia da família, etc.) e do aparato repressivo estatal.

A pandemia soma-se à crise latente do sistema desde os eventos de 2008 e a crise manifesta avança celeremente. Ela nos coloca de modo cada vez mais premente e claro, como observa Zizek o conflito e a decisão entre a civilização e a barbárie administrada.

Passada quase uma década do desastre de Fukushima, uma nova e ampliada crise material de repercussão global, desta vez afetando diretamente as populações de modo “democrático”, isto é, sem levar em conta fronteiras nacionais, barreiras de classe, etc. atualiza a imaginação do desastre e pede novas  respostas da inteligência criativa aos desafios do presente e do futuro.







1) Sontag, S. - The Imagination of Disaster, in Against Interpretation and Other Essays. 1996
             http://raley.english.ucsb.edu/wp-content/uploads/Reading/Sontag-disaster.pdf

2)  Um exemplo que analisei no ensaio Flux, spirals and the imagination of destruction é a série de
     desenhos de Leonardo da Vinci denominada Diluvios
    https://archive.org/details/M.GuimaraesLimaLEONARDODAVINCIFluxSpiralsAndTheAestheticsOfDestructionPREPUBL.2_201506/page/n4/mode/2up

3) Žizek, S.  - PANDEMIC! COVID-19 Shakes the World, OR Books, New York • London, 2020

4) Chauí, M - Quem sabe faz a hora, in Brasil 247, 4 de abril de 2020
                       https://www.brasil247.com/blog/quem-sabe-faz-a-hora-39yu0go5


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